quinta-feira, 21 de maio de 2015

Em casa

Não costumo correr no sítio exato onde moro. Existem subidas em todas as direções e os percursos disponíveis são os mesmos dos veículos cujas rodas ridicularizam as minhas fracas pernas. Hoje, contudo, arrisquei-me. Queria tratar com rapidez deste aviso que o meu plano de treinos teima em alertar-me de forma sonora. Comecei por uma subida íngreme que, combinada com o vento, me tirou o ar. Recuperei com uma linha recta com vista para a montanha e distraí-me com a paisagem e os cheiros a que não estou habituada. Voltei pelo mesmo caminho e passei pela minha antiga casa. Pela minha primeira casa. Não parei. Já estava em descida acelerada e apenas fixei o olhar por segundos. Tive um flash daqueles que os filmes utilizam para retratar uma morte em progresso. Vi-me lá sentada no chão da sala vazia com a primeira pizza que encomendámos. Lembrei-me dos azulejos laranja da cozinha que depressa substituímos. Quando disse-lhe que estava grávida. Lembrei-me da varanda forrada a madeira e do estendal enorme que conquistou a minha versão Isaura. A Inês quando chegou a casa. Quando começou a andar agarrada ao sofá azul. A minha bichinha no colo dela- sem a magoar. O Gonçalo de fralda por todo o lado. A cadeira de bebé com nuvens azuis. A empregada que me mudou toda a decoração da cozinha. Corria e lembrava-me. Corria e pensava como as coisas que são coisas não deviam ter importância. São matéria. Não têm vida. Mas têm. Fazem parte de nós que lhes damos sentido. 
Hoje corri perto da minha casa. Da minha história. 

[este relato poderia ser bonito e poético se não tivesse corrido demasiado rápido na última descida. A pensar em bebés, em momentos e coisinhas fofinhas, depositei muita força numa passada e a guinada no dedo mindinho teve repercussões imediatas no extremo oposto das costas. Fiz os três últimos quilómetros como quem apanha azeitonas- agarrada às costas- e não estou certa de voltar a ter uma postura humana. E assim se assassina uma bonita história.]

2 comentários:

  1. Quando corremos vamos tão "connosco" que as memórias assaltam-nos a mente.
    Espero que estejas melhor...beijinho

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  2. A trip down memory lane.. também gosto dessas :) As melhoras!

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